domingo, 2 de dezembro de 2012

A RESPONSABILIDADE CIVIL DO SÓCIO NO ÂMBITO DO DIREITO SOCIETÁRIO E A SOCIEDADE LIMITADA



Michelly Regina Viau FERNANDES[1] [2]




RESUMO
O presente artigo versa sobre a responsabilização dos sócios na seara contratual, tendo em vista que a pessoa jurídica passa a ser o núcleo referencial para regular um conjunto complexo de relações jurídicas que envolvem diversos vínculos entre o sócio e a sociedade, entre a sociedade e terceiros e entre os próprios sócios mediante espécie de um ordenamento jurídico privado, o contrato social. Este, por sua vez, submete-se a um ordenamento jurídico superior composto por normas que regulamentam os limites do que pode ser contratualmente estipulado e que também fornece outro conjunto de normas que regulam as diversas hipóteses que o legislador entendeu não deixar ao alvedrio dos sócios, em especial, a responsabilização destes. Assim quando os sócios aderem ao contrato social, assumem que estão sujeitos aquele regime normativo.
Palavras-chave: Sócio- Contrato Social- Sociedade- Responsabilização


Considerações iniciais

Basicamente a estrutura da responsabilidade civil advém da concepção clássica de proteção ao lícito e repressão ao ilícito. Nos primórdios da civilização havia a vingança privada e o princípio clássico “olho por olho, dente por dente”, ou seja, reparava-se o mal com outro mal. Dias destaca que “a princípio, o dano escapa ao âmbito do direito; domina então, a vingança privada” . (Dias, 1987, p.19).
Em verdade, todos os atos praticados em sociedade geram algum tipo de responsabilidade, todavia, o que realmente interessa quando se fala em responsabilidade é aprofundar o problema na face assinalada, de violação da norma ou obrigação diante da qual se encontrava o agente.
Reis (1998, p.10) afirma “que a primeira noção do dano e da sua reparação está no Código de Hamurabi:

“A primeira noção que se tem conhecimento na história da civilização a cerca do dano e sua reparação, através de um sistema codificado de leis, surgiu na Mesopotâmia através de Hamurabi. (...) o texto do Código demonstra uma preocupação de Hamurabi em conferir ao lesado uma reparação equivalente. (Reis, 1998. p. 10, sem grifos no original)

Nessa fase, a reparação pelo dano recaia geralmente sobre o corpo do ofensor, que era retaliado na medida da ofensa praticada. A essa fase sucede a de reparação mediante pagamento de uma espécie de resgate, embora Reis destaque, que mesmo no Código de Hamurabi já se previa “a reparação do dano a custo de pagamento de um valor pecuniário”, e que seu objetivo era, além da satisfação patrimonial, impedir o sentimento de vingança que poderia contrariar o sentimento de “unidade e harmonia do grupo social”. (Reis, 1998, p.10-11).
Merece menção o Código de Manu que tinha como diferença em relação ao de Hamurabi o fato de que naquele a vítima era ressarcida “as expensas de um certo valor pecuniário, arbitrado pelo legislador”, enquanto neste “ a vítima ressarcia-se a custa de outra lesão levada a efeito no lesionador”. (Reis, 1998, p.12).
Mas foi no Direito Romano que a matéria ganhou melhor tratamento, através da Lei das XII Tábuas, da Lex Aquillia3 e da legislação justiniana, culminando na orientação segundo a qual podiam reclamar uma reparação consistente sempre em uma soma de dinheiro prudentemente arbitrada pelo juiz. O arbitramento por um juiz ou legislador permite verificar que o Estado, ainda que em sua forma primitiva, passa a compor os litígios entre ofensor e ofendido, buscando a reparação dos danos causados a este e a sanção daquele.
COMIN (2007, p. 211) afirma que ainda em evolução a responsabilidade civil experimenta a ideia de restrição dos atos ilícitos que o Estado considera relevantes. Historicamente a evolução principia com a responsabilidade subjetiva clássica, baseada na culpa, passando para a responsabilidade subjetiva com culpa presumida, até chegar a responsabilidade objetiva. O estágio atual da responsabilidade civil demostra que prevalece no Brasil o aspecto compensatório da indenização derivada das hipóteses de responsabilidade civil, todavia não é possível deixar de mencionar os aspectos punitivos e preventivos para conferir à reparação um fator de desestímulo ao agente para que não pratique atos que violem o direito de outrem novamente.


1.    Responsabilidade Objetiva

A modernização da sociedade trouxe a luz situações em que é difícil ou impossível para o ser humano comum auferir o elemento culpa, tanto que se evoluiu da culpa provada para a culpa presumida até se chegar a teoria da responsabilidade objetiva.
Dias (1987) destaca que a teoria da responsabilidade objetiva tem o mérito de enfrentar a questão da reparação do dano, cujo problema está na afirmação de que o seu fundamento “não se poderia encontrar senão no delito e que, portanto, sempre se deparasse uma responsabilidade sem delito, conviria de qualquer forma, imaginá-lo”. E mais adiante afirma que “a doutrina do risco tem, pelo menos, o mérito de se inteirar daquele equívoco e, se é passível de crítica, esta por certo não reside no fato de contradição. Corresponde em termos científicos, a necessidade de resolver casos de danos que pelo menos com acerto técnico não seriam reparados pelo critério clássico de culpa”.
No Direito Brasileiro a responsabilidade objetiva está embasada na teoria do risco, que foi recepcionada pelo Código Civil no artigo 927, parágrafo único, que diz “haverá obrigação de reparar o dano independentemente de culpa, nos casos especificados em lei, ou quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, riscos para os direitos de outrem”.
Cumpre ponderar se a criação de uma estrutura societária que prevê a responsabilidade limitada dos sócios faz parte dessa evolução e se a teoria do risco deve ser aplicada, afinal, os sócios gozam de uma vantagem relevante, ao não serem em regra, responsabilizados por atos que são tomados como originariamente praticados por uma sociedade, ou seja, uma pessoa jurídica autônoma que não se confunde com a pessoa dos sócios que ficam, assim, protegidos dos efeitos que o descumprimento das obrigações acarreta. Em regra a resposta tende a negar a possibilidade da aplicação da teoria do risco, pois isso importaria romper o sistema da responsabilidade limitada dos sócios.
No caso do Direito Societário, o Código Civil trata da responsabilidade objetiva, embora use a expressão empresa no sentido de sinônimo de sociedade, ao dizer que “ressalvados outros casos previstos em lei especial, os empresários individuais e as empresas respondem independentemente de culpa pelos danos causados pelos produtos postos em circulação”. Todavia, essa disposição trata da responsabilidade objetiva da sociedade (empresa) por danos que decorram do produto que colocam à comercialização, ou seja, mais próxima da questão do consumidor e seu regime de proteção, repetindo, em parte, disposição que já consta da lei especial.
A responsabilidade objetiva da sociedade não importa rompimento, a priori, do sistema de responsabilidade limitada dos sócios, prevista no Código Civil, dando margem, quando muito, à aplicação do art. 28 do Código de Defesa do Consumidor que trata especificamente da teoria da desconsideração da personalidade jurídica. Embora através dessa teoria, seja possível atingir a pessoa dos sócios, isso não ocorre por conta da aplicação direta da teoria da responsabilidade civil objetiva.
Couto de Castro afirma que a equação para a responsabilidade objetiva e também aborda duas teorias do risco:

“(...) de um lado, o responsável pela condutassem falha, mas que provocou o dano; de outro lado, o lesado, a vítima, que normalmente também não terá agido com culpa. Se nenhum dos dois é culpado, é socialmente mais justo atribuir o ônus indenizatório àquele que cria o risco (teoria do risco criado) e, outras vezes mais ainda, provoca o risco e daí obtém um proveito (teoria do risco proveito)”. (Castro, p.33, sem grifos no original).

Apesar de pequenas variações nas teorias é possível verificar que basta que se configure o dano a partir de uma ação ou omissão para ficar caracterizado o dever de indenizar, independentemente do elemento culpa.

2.    A importância do princípio da boa-fé na responsabilidade civil dos sócios

Humberto Teodoro Júnior, em obra anterior ao Código Civil atual, destacava a posição do princípio da boa-fé como um princípio geral de direito aplicável independentemente de sua positivação:

“Muitos códigos são expressos em afirmar que os contratos devem ser pactuados e executados segundo o princípio da boa-fé. Nosso Código não contém norma específica sobre o tema, mas a doutrina e a jurisprudência entendem, à unanimidade que dito princípio prevalece entre nós, como princípio geral de direito”. (THEODORO JUNIOR, Humberto. 1999, p.31).

Em que se pese se tratar de uma regra de fundo ético, que prescinde de qualquer normatização, constou expressamente do art. 422 do Código Civil de 2002: “Os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé”.
No caso da pessoa jurídica sociedade limitada, esta confere aos sócios o direito de limitarem a sua responsabilidade ao valor das quotas. Assim, a violação de uma obrigação pela sociedade e a responsabilidade patrimonial consequente encontram aquele anteparo que, a priori, é intransponível.
Sendo a sociedade limitada a criação do engenho humano, à qual é atribuída uma personalidade que lhe permite ter autonomia e capacidade distinta da dos sócios, estes, desde a sua criação devem observar o princípio da boa-fé. Não se trata tão somente da sociedade observar tal princípio, pois essa obrigação é dos sócios também, na medida em que usufruem de um mecanismo jurídico diferenciado, que pressupõem sejam atendidas certas premissas, em especial, que a sociedade se dedique ao seu objeto social, para gerar empregos, pagamento de tributos e contribuições e assim colabore para o desenvolvimento da comunidade.
Transpondo essa orientação para o Direito Societário tem-se que destacar o fato de que o contrato social da sociedade limitada, embora firmado entre sócios, espraia seus efeitos sobre terceiros, no caso destaca-se a posição dos credores. Daí emerge que os sócios devem atuar com lealdade e confiança, não somente entre si, nas relações internas da sociedade, mas também nas relações externas quando fazem uso da sociedade.
Portanto, a utilização de uma pessoa jurídica, em especial daquelas sociedades que limitam a responsabilidade dos sócios, contra a finalidade para qual foi constituída, importa violação do princípio da boa-fé.
No caso a aparência precisa ser observada com atenção. Uma sociedade limitada atua aparentemente em no me próprio no momento de contrair suas obrigações, ela goza da autonomia obrigacional que o Direito lhe concedeu quando lhe outorgou personalidade jurídica. Se há uso disfuncional, em desconformidade com a função precípua para a qual foi criada, tem-se abuso do direito de constituir e utilizar a sociedade. Esse tipo de pratica viola o princípio da boa-fé que orienta todos os jurisdicionados na formação de seus negócios jurídicos. Mutatis Mutandis isso se aplica à sociedade limitada porque ao formarem o contrato social fixaram regras que envolvem a execução de um determinado fim, de um determinado objeto, que precisa ser rigorosamente respeitado para que continuem a ter a limitação da responsabilidade, sob pena de se permitir avançar para a realidade que está subjacente à estrutura jurídica denominada sociedade.
            Noronha (1999, p.136) afirma que “A boa fé que deve orientar os sócios de uma sociedade é de natureza objetiva estando amparada nos primados da lealdade e da confiança”.         
            Capelo de Souza (1995, p.530), ao enfrentar o tema abuso do direito geral de personalidade por violação da boa-fé e doa bons costumes, destaca os critérios que orientam a dinâmica da tutela geral no caso do exercício abusivo de um direito. Ele destaca que trata de um valor recebido pela ordem jurídica: “O direito geral de personalidade é sindicável nos termos gerais do art. 334 CC, também quando seu titular excede manifestamente os limites impostos pela boa-fé e pelos bons costumes”.
            As considerações acima sobre abuso de direito, direitos da personalidade confiança, portanto, servem para demonstrar que em relação a pessoa jurídica sociedade limitada há espaço para a aplicação do princípio geral da boa-fé o qual deve nortear a conduta dos sócios desde o momento que antecede a formação de uma sociedade e durante toda a vida desta.

3.    O sócio na sociedade limitada

Como ensina Coelho (2007, p.366), “ a história da sociedade limitada é pequena e pobre”. Os autores divergem no sentido de que ela surgiu como uma forma de atender os pequenos e médios empreendedores que não podiam ter acesso à estrutura complexa de uma sociedade anônima, mas que gostariam de praticar suas atividades econômicas gozando da limitação de responsabilidade.
Atualmente a sociedade limitada é regulada pelo Código Civil, sendo possível aos sócios escolher o regime de regência supletiva entre as sociedades simples e anônimas.
Estabelece-se através do contrato social uma relação entre sócio e sociedade, pois a partir do registro daquele atribui-se a personalidade jurídica que importa na formação de um novo sujeito de direito, que possui, entre outras características, a autonomia patrimonial. Sendo assim , o contrato social tem peculiaridade em envolver obrigações recíprocas entre sócios, obrigações entre sócios e a sociedade e obrigações da sociedade para com terceiros.
Entretanto, a lei não estabelece de forma sistemática em que consistem essas obrigações e direitos, as quais devem ser extraídas do Código Civil. Inicialmente, os sócios não possuem o dever de trabalho, em regra, pois sua obrigação é a de contribuir para as atividades sociais com bens. O contrato social pode fixar obrigações que são próprias dos sócios, daí surgindo o dever. Mesmo assim, se o contrato social exigir o trabalho dos sócios não poderá fazê-lo a título de contribuição para a formação do capital social, pois, na sociedade limitada, é expressamente vedada a contribuição com serviços.
Sem prejuízo de outros direitos e deveres os sócios ainda tem direito à participação dos lucros, à liquidação social e à fiscalização regular da sociedade. Sem dúvida porém, o maior interesse é o da limitação da responsabilidade.
De fato a sociedade limitada é um tipo de pessoa jurídica que permite ao sócio limitar a sua responsabilidade ao valor das suas quotas, existindo contudo, responsabilidade solidária, pela integralização do capital social. Entre o conjunto de direitos e deveres, destaca-se o dever de contribuírem com recursos de seu próprio patrimônio para a formação do capital social.
Se os sócios subscrevem e integralizam o capital social não sua totalidade, adquirem de imediato aquele que parece ser o maior benefício desse tipo societário: a limitação da sua responsabilidade ao valor das  quotas que subscreveram e integralizaram. Entretanto, é facultado aos sócios definirem o momento em que se dará a integralização, mas se assim optarem ficarão obrigados solidariamente por ela.

Considerações finais

A atribuição do status de sujeito de direito à pessoa jurídica  implicou a possibilidade de reconhecer a existência  de uma realidade metajurídica que permite a separação entre criador e criatura.
A partir da pessoa jurídica como o centro referencial, cresce o movimento segundo o qual é preciso regular com maior precisão as hipóteses em que as relações jurídicas poderão ser imputadas aos sócios.
Adquire especial relevância o princípio da boa-fé porque associado a dois aspectos importantes para as sociedades limitadas, a lealdade e a confiança. Assim nas relações jurídicas envolvendo a sociedade limitada, é comum os agentes econômicos imputarem os riscos da contratação e a partir do limite da responsabilidade dos sócios, mas também têm a expectativa de que na relação entabulada todos, sócios e sociedade, agirão com lealdade e confiança para evitar infringência à legislação ou  abuso de direito, fatores que levam à relativização daquela responsabilidade. Abre-se, assim, uma chave para o fim econômico e social da sociedade limitada, o que permite uma abordagem a partir da análise econômica do direito, com novos enfoques para justificar ou compreender o porquê da relativização da limitação de responsabilidade dos sócios.

Referências

BARBOSA Filho, Marcelo Fortes. Livro II – Do Direito de Empresa. Título I – do empresário. In: PELUSO, Cezar (coord.). Código Civil comentado. 4 ed. Barueri, SP: Edit. Manole, 2010.

CASTRO. Guilherme Couto de. A responsabilidade civil objetiva no direito brasileiro. Rio de Janeiro: Forense, 2005.

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COELHO, Fábio Ulhoa. A sociedade limitada  no novo Código Civil. 8. Ed. rev. e ampl. São Paulo: Atlas, 2008.

COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de direito comercial. 10. Ed. rev. atual e ampl. São Paulo: Saraiva, 2007.

COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de Direito Comercial. Volume 1. 15 ed. São Paulo: Edit. Saraiva, 2011.

COMIN, Eenata de Paula Puzzilli. Discussão sobre a indenização punitiva no Brasil. Revista de direito mercantil, industrial, econômico e financeiro, São Paulo, ano 46, n. 147, p.210-232, jul/set. 2007.

DIAS, José de Aguiar. Da responsabilidade civil. 8 ed. Rio de janeiro: Forense, 1987.

NORONHA, Fernando. Direito das obrigações. 2. ed. rev. atual. São Paulo: Saraiva, 2007, v.1.

RAMOS, André Luiz Santa Cruz. Direito Empresarial esquematizado. 2 ed. São Paulo: Edit. Método, 2012.

REIS, Clayton. Dano Moral. Rio de Janeiro: Forense, 1998.

THEODORO JÚNIOR, Humberto. O contrato e seus princípios. Rio de Janeiro: Aide, 1999.


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[1] Artigo destinado à disciplina de Direito Empresarial I do Curso de Bacharelado em Direito da  Universidade Estadual de Roraima como requisito para a obtenção da segunda nota.

[2]  Acadêmica do sétimo período do curso de Direito da Universidade Estadual de Roraima.

[3] DIAS, destaca que é na “lei Aquilia que se esboça, afinal um princípio geral regulador da reparação do dano. Embora se reconheça que não contivesse ainda uma regra de conjunto nos moldes do direito moderno, era sem nehuma dúvida, o germe da jurisprudência clássica com relação à injúria, e fonte direta da moderna concepção da culpa aquiliana que tomou da lei Aquília seu nome característico”. (Da responsabilidade civil. 8 ed. Rio de janeiro: Forense, 1987. p.21).